Debate sobre regulação do uso social da cannabis deve ser alargado a todas substâncias ilícitas

Para João Goulão, director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, deve-se discutir o papel que o Estado deve assumir na limitação do acesso a determinadas substâncias ou se deve deixar "ao arbítrio do cidadão supostamente informado essa capacidade".

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"Hoje não estamos pressionados para mudar a todo o custo, temos de ter tempo para criar alguma distância e acompanhar essas experiências", acredita João Goulão Rui Gaudencio

O director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), João Goulão, defendeu nesta segunda-feira que o debate sobre a regulação do uso recreativo da cannabis deve ser alargado a todas as substâncias ilícitas.

Regular o uso da cannabis para uso social e recreativo é "uma discussão que está a ocorrer um pouco por todo o mundo" e que deve acontecer num curto prazo em Portugal, tendo já havido algumas tentativas tímidas de discutir esta questão a par do seu uso para fins terapêuticos, disse João Goulão à agência Lusa, considerando que foi "um ganho significativo" ter-se separado essa discussão.

Para o especialista, essa discussão deve englobar todas as substâncias ilícitas.

"Quando fomos pioneiros e tomámos a opção de alterar o quadro legal de uso de substâncias em Portugal, fizemo-lo para todas as substâncias e foi com uma inspiração humanista de restituir aos utilizadores de substâncias ilícitas a mesma dignidade que têm pessoas com outras doenças", afirmou João Goulão, à margem do III Congresso do SICAD, que decorre até quarta-feira em Lisboa.

Agora devia haver "o mesmo tipo de abrangência", disse, explicando que "se a lógica que presidiu à descriminalização de todas as substâncias foi de considerar que aquilo que verdadeiramente importa é a relação que o cidadão estabelece com a substância e não a substância ela própria, não vejo porque motivos havemos de conferir aos produtos de cannabis um estatuto diferente dos das outras substâncias e isto porque não acredito, e cada vez mais a evidência científica aponta para isso, que a designação de drogas leves e drogas duras não faz sentido".

Acompanhar experiências internacionais

Para João Goulão, trata-se de "uma questão filosófica", mas também de discutir o papel que o Estado deve assumir na limitação do acesso a determinadas substâncias ou se deve deixar "ao arbítrio do cidadão supostamente informado essa capacidade".

"É para esse tipo de discussão que este tema nos remete", disse o médico, sublinhando que não tem "uma posição fechada" sobre o assunto.

"Não tenho uma posição fechada, longe de mim, acredito na bondade da regulação em alguns aspectos, nomeadamente no controlo da qualidade, mas também receio que venhamos a incluir na panóplia de substâncias disponíveis mais uma ou mais várias sem sabermos exactamente que impactos isso venha a ter", frisou.

O médico aconselhou uma "atitude de prudência" e de acompanhamento das experiências que estão a acontecer noutros países, como no Uruguai ou no Canadá, e ter prova científica acerca dos impactos ao nível da saúde individual e colectiva.

"Hoje não estamos pressionados para mudar a todo o custo, temos de ter tempo para criar alguma distância e acompanhar essas experiências", disse, salientando que quando o consumo de drogas foi despenalizado em 2000, Portugal estava "perante uma situação catastrófica, não é o caso hoje".

O que está em discussão é perceber se é mais eficaz um quadro de regulação ou um quadro de liberalização como o que existe agora em que "a compra e a venda de cannabis só dependem das leis do mercado sem que haja qualquer interferência a regular essa relação", salientou.

Trata-se de perceber se conferir à cannabis, ou a outras substâncias, um estatuto semelhante àquele que tem o tabaco ou o álcool, em que "o Estado interfere, controla a qualidade, regula os pontos de venda, as idades, as formas de acesso às substâncias", tem um impacto positivo ou negativo no seu uso.

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