Skip to main contentSkip to navigationSkip to navigation
Cracolândia ... sem paralelos em nenhuma cidade do mundo. Fotografia: Brazil Photo Press/LatinContent/Getty Images
Cracolândia ... sem paralelos em nenhuma cidade do mundo. Fotografia: Brazil Photo Press/LatinContent/Getty Images
Cracolândia ... sem paralelos em nenhuma cidade do mundo. Fotografia: Brazil Photo Press/LatinContent/Getty Images

Por dentro da Cracolândia, a feira aberta de crack que São Paulo não consegue destruir

This article is more than 6 years old

O cenário desolado da Cracolândia, assentada bem no centro da cidade há mais de vinte anos. Todo prefeito acredita ter a solução, mas as últimas batidas policiais violentas só levaram os adictos para a próxima esquina

“É uma vida horrível. Você não come, você não dorme. Todo o dinheiro que consegue vai para o crack”, conta Felipa Drumont.

Felipa tem 26 anos, é trans, sem-teto e viciada em crack. Há quatro anos anos, ela vive nas ruas de uma área do centro de São Paulo que ganhou fama por motivos infelizes: a Cracolândia.

Centenas de pessoas sentam-se no meio das ruas, embrulhadas em cobertores, fumando crack abertamente. Outros vagueiam, com o olhar perdido, procurando latas de alumínio e outros recicláveis para vender. Quase todos são magros e ossudos, o rosto contorcido por anos de uso de drogas. Há lixo por toda parte e o cheiro de corpos não lavados é pungente.

A polícia patrulha o perímetro, a poucos metros de distância. Eles ficam de olho em tudo, mas não intervêm no uso e tráfico das drogas. O que eles fazem é principalmente vigiar para que não ocorram outros crimes, como roubos. Há tendas que oferecem redução de danos, funcionários municipais e veículos de ONGs com o logotipo “Craco Resiste”.

Em dias úteis, trabalhadores de mochila e também engravatados com cara de escritório passam apressados, pelo outro lado da rua. Apesar da cena ser de total degradação urbana, a verdade é que a Cracolândia fica em uma área de alto valor imobiliário.

A Cracolândia fica numa região de alto valor imobiliário no centro de São Paulo. Fotografia: Joel Silva/Folhapress

Ao lado fica a Luz, maior e mais movimentada estação ferroviária da cidade. A menos de cem metros está a sala de concertos em estilo neoclássico onde Herbie Hancock, lenda do jazz americano, tocou no ano passado. O bairro tem colégios técnicos privados e um centro de lazer. A redação da Folha de São Paulo, maior jornal da América do Sul, conhecido como o New York Times do Brasil, fica a algumas quadras dali.

Nada disso importa muito para os adictos. Alguns brincam ou se cumprimentam com apertos de mão, mas o que se vê na maioria é só perplexidade e desorientação.

É difícil traçar paralelos com qualquer outra situação, em qualquer cidade do mundo. Para alguns, inclusive o atual prefeito João Doria, o lugar é motivo de vergonha.

Ao assumir o cargo em janeiro, o empresário magnata declarou guerra à Cracolândia. Em maio, no início de uma manhã chuvosa de domingo, Felipa viu os helicópteros chegando e um batalhão de 900 policiais e agentes de segurança armados desceu onde estavam os adictos. Ela diz que a polícia usou balas de borracha e bombas de efeito moral para dispersar a multidão.

“A polícia apareceu jogando bomba em todo mundo. Graças a Deus que eu não me machuquei, mas fiquei apavorada.”

Felipa e centenas de outros adictos se espalharam. Muitos se refugiaram num posto de gasolina próximo, outros deram entrada em programas públicos de tratamento ou foram acompanhados pela assistência social municipal e levados a abrigos lotados.

Depois de quebrar o mercado de crack, a polícia bateu os imóveis da região, apreendeu drogas e armas e prendeu dezenas de suspeitos de tráfico.

Funcionários da prefeitura consideraram a operação um sucesso. Dória declarou, triunfante: “A Cracolândia acabou, não vai voltar mais”.

Seis meses depois, a Cracolândia continua, a poucos metros de onde aconteceu a limpeza.

Operação policial na Cracolândia no começo do ano. Fotografia: Fernando Bizerra Jr/EPA

Uma zona livre para as drogas

O leitor que já tiver assistido à série de televisão americana The Wire talvez possa imaginar a Cracolândia como o “Hamsterdam” — um bloco de quarteirões desocupados onde a polícia de Baltimore, na tentativa de diminuir a criminalidade das ruas, criou uma “zona livre” para traficantes e adictos.

Mas há duas diferenças importantes. Em primeiro lugar, a Cracolândia não fica em terrenos desocupados, mas num centro movimentado e ativo. A área passa por um processo de gentrificação e existe um plano ambicioso de revitalização para 2018, que inclui a construção de 1200 novos apartamentos.

A segunda diferença é que esta situação, com o descaramento das drogas à vista de todos, é uma “atração” permanente no centro de São Paulo há mais de duas décadas.

Desde que apareceu, na década de 1990, quando chegou ao mercado da cidade a versão inalável e altamente viciante da cocaína, as prefeituras sucessivamente tentaram eliminar a Cracolândia, na maior parte das vezes através de repressão policial, e sempre falharam.

Desde então, o chamado “fluxo” da concentração de usuários vem se mudando de uma rua para outra do bairro, sempre perseguido por operações policiais violentas.

Em 2008, o prefeito Gilberto Kassab enviou a polícia para dispersar os adictos, assim como faria seu sucessor nove anos depois. Então, assim como Dória viria a fazer, ele declarou: “A Cracolândia não existe mais”.

Em 2012, o então secretário de justiça da cidade disse o mesmo, desta vez depois de um processo que veio a ser chamado de “Operação Dor e Sofrimento”.

Nas duas vezes, os adictos simplesmente se reagruparam na rua ao lado.

Depois da invasão em maio, a Cracolândia se formou outra vez 400 metros adiante, num parque. Felipa foi atrás: a operação não foi suficiente para dissuadi-la de usar o crack. “Comecei a usar mais droga ainda porque fiquei nervosa e assustada”, diz ela.

Policiais confrontam os usuários da Cracolândia. Fotografia: Paulo Whitaker/Reuters

Não obstante, aqueles que dizem que a Cracolândia precisa acabar aprovam amplamente essas táticas. Os apoiadores consideram-na uma ameaça, argumentam que ela fortalece o crime organizado, deteriora a cidade e perpetua um ciclo de vício e miséria.

Faltam dados precisos, mas acredita-se que o Brasil comporta o maior número de usuários de crack do mundo. De acordo com a última pesquisa nacional sobre o crack, feita pela Fiocruz em 2014, existem cerca de 370 mil usuários regulares em 27 capitais estaduais e no Distrito Federal.

O Brasil tem fronteiras permeáveis com todos os maiores produtores de cocaína: Bolívia, Colômbia e Peru.

São Paulo também é a base da quadrilha do narcotráfico mais poderosa do país, o PCC (“Primeiro Comando da Capital”). As autoridades dizem que o PCC controla o fornecimento da Cracolândia.

Elas dizem que a repressão era necessária para quebrar o domínio do tráfico no bairro.

“Com a operação [de maio], o estado retomou um território que estava dominado pelo tráfico de drogas, o que facilita o trabalho dos assistentes sociais e da área de saúde”, explica Floriano Pesaro, secretário de desenvolvimento social do governo do estado.

Para comprovar o sucesso da estratégia, apontam um estudo encomendado pelo governo estadual que mostra que a Cracolândia diminuiu, passando de 1861 usuários antes da operação em maio a 414 em julho, uma redução de 77%.

Clarice Sandi Madruga, coordenadora da pesquisa, diz que a queda tem muitos motivos. Alguns dos adictos buscaram ajuda; outros aproveitaram a oportunidade da operação para escapar de dívidas com os traficantes.

Além disso, diz ela, cerca de um terço dos atuais residentes da Cracolândia são recém-chegados que vêm à procura dos serviços de saúde e refeições (fornecidos pela Prefeitura) e da relativa segurança. (Felipa confirma: para os viciados, alega, há a certeza da segurança trazida pelo agrupamento, desde que você não viole as regras do local, que incluem não roubar.)

Para Clarice, apesar de a Cracolândia continuar existindo, essa combinação de alguns incentivos e muita punição funcionou. “Era preciso fazer alguma coisa”, declara.

Funcionários da prefeitura removem os barracos da praça Princesa Isabel depois das últimas operações da polícia. Fotografia: Nelson Almeida/AFP/Getty Images

Adictos e abandonados

Mas, apesar do apoio de muitos paulistanos — 60%, segundo uma pesquisa do Datafolha — muitos outros discordam da invasão.

Eles alegam que a Cracolândia é um sintoma de problemas mais abrangentes da cidade: a pobreza, os sem-teto e a desigualdade. Diz-se também que a Cracolândia, apesar de todos os problemas, funciona como um refúgio para os adictos, oprimidos e abandonados da cidade.

“O trabalho do governo de São Paulo é um exemplo clássico da ideia de ‘guerra às drogas’, travada há décadas e que não conseguiu diminuir o uso de drogas, afastou os usuários dos serviços básicos de saúde e deu azo a violações generalizadas dos direitos humanos”, argumenta César Muñoz, pesquisador sênior da instituição Human Rights Watch.

Mesmo dentro do governo, alguns funcionários estão revoltados com as táticas antiquadas que identificam na invasão.

“Os traficantes presos são só os pequenos”, explica Arthur Pinto Filho, promotor de Direitos Humanos e Saúde Pública do Ministério Público Estadual de São Paulo.

“O tráfico continua. Foi um imenso desperdício de dinheiro público: eles continuam no mesmo lugar. Foi um passo atrás. É a mesma coisa que já foi feita há anos e nunca funcionou.”

Embora todos concordem que a Cracolândia está menor do que era no seu auge, muitos desconfiam da explicação do governo e acham que o motivo é só um: a violência policial.

“Mesmo que haja uma redução do tamanho, não é por causa de tratamento, interrupção do uso ou melhora na qualidade de vida. Eles estão saindo do centro porque existe uma forte repressão policial”, afirma Thiago Calil, da ONG É de Lei, que trabalha na região há treze anos.

Incêndios durante a operação policial na Cracolândia no começo do ano. Fotografia: Paulo Whitaker/Reuters

A prefeitura tem mais de 150 funcionários da saúde na região da Cracolândia. Dois deles, não autorizados a falar oficialmente, dizem que as invasões policiais aumentaram a desconfiança e dificultaram a aproximação dos adictos para oferecer ajuda.

Outra crítica é que as incursões acabam dispersando os usuários, que vão formar “minicracolândias” com algumas dezenas, em vez de centenas de adictos. Já foram identificadas ao menos 22 agrupamentos assim pela cidade.

“Nossas equipes informam que os usuários saíram do centro e estão usando crack em regiões mais afastadas da cidade”, diz Calil.

É melhor ter 22 minicracolândias do que uma grande Cracolândia, argumenta Felipe Sabará, secretário de assistência social da prefeitura de São Paulo. Para ele, é mais fácil oferecer assistência social aos usuários se eles estiverem menos concentrados.

“Quanto mais gente, quanto maior for a densidade do grupo, mais difícil se torna a abordagem”, diz Sabará, que culpa o crime organizado e a conexão que os usuários estabelecem com seu território.

Ele diz que sua equipe está ampliando os serviços de apoio pela cidade para abordar a diáspora e contesta a acusação de que a prefeitura só quer varrer a Cracolândia para debaixo do tapete para poder gentrificar o bairro.

“Estamos fazendo o contrário. Higienizar é fingir que está resolvendo o problema, mas só fechar os olhos para ele, que é o que a administração anterior fez. Nós estamos resolvendo o problema”, declara.

Mas Floriano Pesaro não cede à ilusão de que a Cracolândia tenha uma solução fácil. “Sabemos que será um processo difícil e longo”, admite.

Até Dória recuou e observa que o problema é histórico, dizendo que o foco deve ser “uma redução considerável e acabar com o shopping das drogas 24 horas”.

A Cracolândia em junho de 2014, antes da Copa do Mundo. Fotografia: Reuters

Redenção

Seis meses depois da invasão, Felipa agora está limpa há dois meses. Ela mora na Tenda 2, uma estrutura criada pela prefeitura no meio da Cracolândia, onde tem uma cama e refeições fornecidas por um programa chamado Redenção.

As camas ficam e contêineres de transporte; há mais de 300 e chuveiros quentes.

Ela diz que foi sim a incursão que a fez sair das ruas: a escalada das operações da polícia motivou-a a parar com a droga e procurar ajuda.

“A coisa sempre foi ruim aqui, mas está piorando”, define.

Ela quer conseguir um emprego e está na fila para uma vaga num abrigo municipal para pessoas LGBT; mas a prioridade é arrumar o RG e outros documentos que perdeu quando dormia na rua.

Mas há duas barreiras a transpor para conseguir emprego: falta de formação e a identidade de mulher trans. Na Cracolândia, pelo menos não era julgada, diz ela.

“Precisamos de mais oportunidades, não só de comida e dinheiro.”

Sabará diz que o governo reconhece essa necessidade básica e destaca o programa Trabalho Novo que, segundo ele, criou mais de 1500 empregos para moradores das ruas. Vinte e dois deles são viera da Cracolândia.

Mas para Cleizer Alves de Paulo, de 31 anos, que continua fumando crack todos os dias, essas oportunidades parecem distantes. Ele vive num dos hotéis da região e ganha dinheiro tatuando os traficantes no coração da Cracolândia.

Já esteve preso cinco vezes, a primeira delas por assalto a mão armada. “Ninguém quer dar emprego para um usuário de drogas”, diz ele.

A administração anterior, do prefeito de esquerda Fernando Haddad, instituiu um programa chamado Braços Abertos, no qual cerca de 450 adictos recebiam uma quantia em dinheiro e abrigo em troca de varrer as ruas e outras pequenas tarefas acessórias.

Elogiado por agências internacionais de combate às drogas como a Open Society Foundation, o programa sobrevive hoje com uma equipe residual e deve terminar em dezembro, conforme a promessa de Dória de encerrá-lo depois das críticas que indicaram que os hotéis onde os adictos eram abrigados estavam dominados pelos traficantes.

Para Francisco Inácio Bastos, chefe da última pesquisa nacional sobre o crack de 2014, é exatamente essa oscilação entre as duas abordagens políticas — a de infligir ou de reduzir danos — a culpada pela longevidade da Cracolândia.

São Paulo trocou de prefeito a cada quatro anos e o cerne da questão está no debate ideológico sobre como abordar a adicção no Brasil.

“Vemos uma mudança de projeto a cada administração, sem nenhuma continuidade. É tudo política. Precisamos de um mínimo de consenso nacional. Não de esquerda ou direita, mas baseado em argumentos científicos mundiais. Sem isso, tudo continua como está”, diz Francisco.

Para Felipa, apesar dos dois meses de sobriedade, o chamado da Cracolândia continua forte. Ela abandonou seu apartamento depois que começou a usar crack e, como tantos outros adictos que perderam quase todo o contato com a família, o principal atrativo dali é o senso de comunidade, por mais disfuncional que seja.

“Somos como uma família de excluídos.”

A equipe do Guardian Cities está em São Paulo para uma semana de reportagens aprofundadas e eventos ao vivo. Não temos como receber comentários em português no site, mas você pode mandar suas ideias e experiências pelo Twitter ou Instagram com a hashtag #GuardianSaoPaulo, ou escrever para saopaulo.week@theguardian.com

Siga o Guardian Cities no Twitter, Facebook e Instagram para participar da discussão, e explore nossos arquivos aqui

Most viewed

Most viewed